segunda-feira, novembro 27, 2006

1 de Outubro de 2004, 00 horas (quinta-feira). Senhora do Monte (Graça), Lisboa.

Sou um lobo solitário que navega de noite.
Sou Jack, o Estripador. Mas não tenho estômago para arejar intestinos de putas.
Prefiro esventrar-lhes o olhar e adivinhar as ânsias de uma vida feliz.
Navegar a noite pode ser um exercício de estilo. Ou um passeio a rasar o medo e as angústias. Porque todos os holofotes têm uma adaga pronta a disparar. Porque todos os palcos podem ser uma sauna de mágoas.
Às vezes sinto-me Bogart, mas sem gabardina, uísques e cigarros. Às vezes sinto-me Garfield, mas não aguento mais do que duas lasanhas seguidas. Às vezes sinto-me viking, mas nunca sei onde deixei o drakkar estacionado.
É da ressaca? Do drambuie que toca “Scotland the brave” no meu estômago a horas impróprias? Será o tatoo de Edimburgo nas minhas veias? Ou simplesmente o apelo de um hamburguer no Mais-que-Donalds?
Putas e vinho verde. Receita santa ou ultrapassada?
Que se lixe!
A crise veio para ficar. Os políticos embarcaram nos camarotes cativos da Arca de Noé e empenham-se diariamente em festivais de mediocridade, cada dia um degrau mais abaixo no caminho da devassidão da inteligência. O dilúvio está próximo? Ignoro. Retiro do meu castelo da Graça, que mira Lisboa com a melancolia das gaivotas. O silêncio da noite é uma faca meiga que atravessa o coração dos puros.
Desço.
Rumo ao Técnico, onde as sentinelas de ébano andam na vida a fazer pela existência.
Ressaltos de esperança às três tabelas.
As 24 Horas de Le Mans em poucos quilómetros. Quinze minutos para dar uma volta completa, em passo calmo.
As obras do Metro da Alameda não são o campo fortificado de Babaorum ou Laudanum. Uma sombra de traseiro mais dilatado e cabelos frisados é a sentinela do pão nosso de cada noite. A única meretriz de ébano que anda para lá e para cá desse lado da avenida.
Um carro pára. Um homem de postura saloia sai. Fala com a sentinela de ébano, grande, robusta, determinada no seu tédio de ver as horas a passar, para cá e para lá, em passos certos de sapatos altos.
Não é um estranho, por certo. E começa um diálogo em black and white. Ele agarra-a, arrasta-a para trás do tapume de metal cinzento, de forma firme. Ela deixa-se ir e depois recupera o fôlego e vem ao de cima da avenida. Não tem medo. Afirma-se. Joga o jogo da sedução que tem regras próprias. Não vai acontecer nada atrás do tapume. Os fetiches do cliente ficarão adiados para as calendas gregas. Aproximam-se outra vez da carrinha. Ficam a falar.
Continuo a circular no carrossel dos carrinhos sem choque da feira de carnes mais popular do mundo, no pára-arranca do desejo.
Tenho o meu “taco” sossegadamente em repouso por dentro dos boxers com padrão escocês e um “tasmanian devil” da Warner Brothers estampado por cima da coxa esquerda. Não são os meus “boxers” mais confortáveis. Apertam ligeiramente nas coxas. Mas recordo com ternura os desenhos animados da Warner e o espírito “pedrado” do Tasmanian Devil, que saía em minúsculos bonecos de plástico oferecidos pelas marcas de gelado.
Olho para as frases nas paredes do Técnico e parece-me que as grande lutas já acabaram. Que as frases são apenas resquícios de um mundo que já não existe, independentemente do tamanho das letras e da justeza ou loucura das palavras de ordem.
O meu coração está em paz. A noite serena. Mas a curiosidade de escritor e o espírito científico obrigam-me a um esforço de sistematização. Procuro captar todos os pormenores. Lá dentro, no Técnico, a guarnição de estudantes constrói um futuro que não sabe se existe.
Cá fora, encostadas às paredes, as mulheres da vida fácil mais difícil que existe devoram o presente com a fatalidade de um “tempus fugit” tatuado no instinto de sobrevivência.
Volta quase completa. Estou junto à estátua do António José de Almeida. Não há pides à vista, nem cargas de cavalinhos de carrossel a distribuir bastonada no 5 de Outubro. Também eu já deixei de jogar à bola no jardim fronteiro à Casa da Moeda. E os desalojados da lotaria da vida ajeitam os caixotes, deitados nos bancos. Indiferentes às mulheres da vida. Sem mulheres na vida. E com muito pouca vida igual à dos homens e mulheres ditos normais. E quanta dignidade em viver em paz mesmo sem ter nada? Toda!
Há carros da polícia a fazer de “pace-car” à volta do Técnico. Furtivos, silenciosos, tranquilizadores. Em rondas frequentes, em velocidade moderada. E as mulheres da vida não querem saber da vida dos polícias. E os polícias não querem saber da vida das mulheres da vida. Andam às voltas porque lhes mandam andar às voltas. Andam às voltas porque a dissuasão é bela. Andam às voltas porque as associações de estudantes do Técnico lembram o aluno liquidado por uma navalha de toxicodependente. Andam às voltas porque se andarem às voltas o ambiente tende a ficar calmo.
Uma ruiva de Ferrari Dino cinzento, modelo antigo, nos seus trintas de lábios carnudos, confessa-me um sequestro sofrido a dar o corpo ao manifesto. Pediu um cigarro. Eu não tinha. Falámos dez minutos, ao sabor do vento. Eu sem querer nada dela. Ela sem querer nada de mim. Apenas para preencher a noite.
Prossigo.
Alma até Almeida, a ruiva continua na vida da noite, de “bomba” atracada no porto de abrigo da placa de estacionamento central, onde os carros dos estudantes do Técnico se intercalam com os poucos veículos das mulheres de vida fácil que atacam de carro e estacionam de “nariz” virado para o Técnico. Ou então com os carros lado a lado, mas num curioso 69, abrindo as janelas para poderem falar umas com as outras quando as horas se sucedem dolorosamente pachorrentas, órfãs de clientes. É nessas horas que os meus passeios “very british”, sem cão, com jornais ou revistas debaixo do braço, intrigam as trabalhadoras. Quem será este homem de cabelo grisalho, de pera, que nos olha como se quisesse decorar todas as rugas da nossa alma?
Volta e meia uma senhora abandona o seu veículo e abanca nos estofos da vizinha do lado. Quase todas fumam. Para matar o tempo. Tal como o meu Corto Maltese privado, comandante da marinha mercante, o avô Ayres Nunes (com y grego, como dizia) fazia nas noites de solidão, quando andava embarcado. E fumava Sagres.
Trocam-se histórias, desgraças, olhares, fumaças, coisas tão simples como os melhores preços dos géneros essenciais, nos supermercados.
Passo por ali, a olhar. Como quem não passa de um figurante. Sou mais bem vestido de fronha do que muitos dos clientes, tenho um ar asseadinho e bem comportado, muito longe do “serial killer”, do grunho rural do ou “pintas” que vai dar a banhada. Os cabelos grisalhos conferem-me uma certa respeitabilidade.
Faço tráfico de saudações de boa-noite, quando calha. E não passa disso, quase sempre. Sou uma espécie de Hitchcock a passear o cãozinho nos seus filmes, em “private joke” institucional. Não faço falta à paisagem, mas a situação é bizarra.
Sou apenas um maluco de jornais debaixo do braço? Um tarado “voyeur” que se excita ao ver as putas e se desmarca para as ruas interiores para se masturbar furiosamente, numa chulice gratuita que se recusa a pagar cinco euros que seja a quem anda na vida? Sou um quarentão sem coragem de ir mais além do que fazer périplos de tubarão tímido à volta do Técnico? Sou um solitário de sexualidade onanista, que vê as meninas em três dimensões, antes de vir para casa satisfazer-se a olhar para um DVD porno no computador?
Ou sou um cliente exigente, que se farta de ver antes de comprar? Um cliente que as sombras vêem desaparecer e imaginam que vai à procura da realização para os outros lados do quadrilátero do Técnico?
Ou sou apenas um homem simples, com uma úlcera duodenal, a precisar de uma certa verticalidade caminhante a seguir ao jantar tardio? Um homem que passeia também por muitos outros sítios e se deixou de peregrinar a Almirante Reis, hoje com perigos a mais para um puto burguês que apenas por acaso já dobrou o Bojador dos quarenta?
Ou sou um homem que gosta de apanhar ar antes de ir para casa depois de uma sessão da meia-noite no Monumental ou de uma tertúlia bem regada a diálogos castiços com a fauna nocturna que, ainda e sempre, resiste ao sono no eterno Galeto?
— Olá, amor. Vem cá, não fujas.
Por vezes a crise obriga ao chamamento profissional. Pouco vulgar. E lá faço um sorriso de ocasião, um gesto de braço (“não, muito obrigado”), um boa-noite simples, sem chantilly ou cereja no topo da voz.
As putas merecem-me o calor humano que tenho guardado no ventrículo esquerdo. Às vezes penso que um dia serei capaz de sorrir aos políticos da mesma forma.
Mas o meu coração tem pouco fel e as putas vendem-se de forma muito mais honesta. Entre uma puta (mulher eternamente ao ataque) e um futebolista (homem eternamente à defesa do resultado), vomitando no espectáculo que lhe dá de comer à vaidade, escolho sem hesitar a decadência suave de uma puta.
Para além disso, os futebolistas passam a vida a dar porrada nos colegas. Nas putas é muito menos frequente. Há mais respeito.


03h15m – Zona do Técnico

Uma pérola de ébano cruza-se comigo. Não tem ar de puta. Veste-se de forma perfeitamente discreta. Não fosse a zona e a hora, ninguém diria que se estava em presença de uma mulher da vida, designação muitíssimo curiosa.
— Boa-noite — disse-me a pérola de ébano.
— Boa-noite — respondi eu, afastando-me em passo lento.
Separámo-nos um do outro. Nem dez segundos decorridos, ouço a voz suave da puta:
— Quer falar comigo? — e ela sorria.
— Posso falar — sorri de volta e aproximei-me.
— São 35 para a pensão.
— Ando só a passear. Moro aqui perto.
O espanto tomou-lhe conta do rosto. Percebo a sua linha de raciocínio: “Mas este tipo não percebeu que eu sou puta? Que falar comigo corresponde a um acto sexual?”. Compreendo que não encara a possibilidade de estar a troçar dela. Percebe que essa não é a minha intenção.
— Eu trabalho.
E disse isto de forma ternamente revoltada. Como quem diz: “Falar comigo é foder”.
— Ando só a passear. Muito obrigado.
— Nada.
E afastou-se. E afastei-me.


03h30m - zona do Técnico

Cruzo-me com um grunho de metro e oitenta, a ver as mensagens do telemóvel. Pinta de emigrante português no Luxemburgo e família em Paris, sem ofensa para todas as partes envolvidas, portugueses incluídos.
Dou a volta à esquina, começando a subir a Rovisco Pais. Uma chavala morena, matulona, com camisa à Feyenoord (branca de um lado, vermelha do outro, na vertical, como no equipamento antigo do Sporting, mas em vermelho) e botas à cowgirl texana (em branco imaculado e tacão à goleador) sai de um carro que a deixa na placa central. Missão cumprida.
Subo.
Na paragem do 60, uma pérola de ébano, grande e esbelta, entra em diálogo com o condutor de um carro. A pérola de ébano entra para o carro e seguem para o destino sexual mais próximo.
Dois rapazolas com ar moderno e descuidado peregrinam insistentemente o muro do Técnico, tipo forte do Beau Geste. A ver as putas? Nada disso. Provavelmente dois estudantes a terminar uma noitada mergulhada em projectos. Queriam saltar o muro, para cortar caminho.
Analisam a saída mais próxima, sem muro. São três metros e picos até ao chão, poiso habitual de putas. Desta feita, estão ausentes. O território marcado por uma garrafa de cerveja Superbock (vazia) e os restos de um maço de cigarros. Duas ou três beatas no chão.
Os estudantes desistem do salto, com vista para uma vetusta farmácia, do lado oposto. Dobro a esquina. Atravesso a rua, novamente a subir para o Técnico.
Do outro lado da estrada fazem-me aqueles sons que se usam habitualmente para chamar um cão. Um simulacro de beijinhos, mas com grande potência fonética. Sons pretensamente libidinosos. Atravesso a estrada.
— Vamo fodê? — diz a menina, maior do que eu, mais larga do que eu, corpo de King Kong miniatura, lábios carnudos, vagamente aparentada com Mike Tyson, muito provavelmente. Não tenho um receio muito profundo de que me bata, porque não tem motivos para isso. Num relâmpago, imagino-a por cima de mim, cavalgando-me insistentemente, com os cabelos em desalinho e um ar profissional, a ver se despacha o serviço rapidamente. Imagino molas de cama a ranger como no filme “Delicatessen”.
É difícil compreender o português dela. Não parece ser oriunda dos países de expressão oficial portuguesa. Percebe a língua, mas fala mal. Isso causa um certo ruído na comunicação.
— Só ando a passear.
— Si. Má podêmo fodê e passeá, tu y io.
— Obrigado. Para já, nem tenho dinheiro. Obrigado.
O argumento da ausência de dinheiro convenceu-a. Despediu-se com um “Tchau” prolongado, sem ressentimentos pelo facto de eu atravessar a rua e não querer nada com ela.
Penso: será mais educado ignorar as saudações das putas, para não alimentar expectativas? Mas falar com elas não é compromisso. Suponhamos que eu considero o preço caro e não se chega a acordo. Que não há química. Nestes casos, há diálogo, mas não existe consenso. Será que a desilusão as assalta, de igual forma? Ou apenas as surpreende a minha forma E.T. de andar à volta do Técnico?
Afasto-me, sem receber na fronha um par de lamparinas que me faria andar à procura do Norte três quinze dias. Safei-me. Não fiz nada para merecer o espancamento, mas arrisquei-me.
Subo.

03h40m – Zona do Técnico, por baixo da estátua de António José de Almeida.

A menina que costuma poisar na paragem andou quinze metros e sentou-se por baixo da estátua. Entro em delírio e imagino-a a dialogar com o Tó-Zé.
— Desculpe, não tem um cigarro que me dê?
— Não dou cigarros a putas.
— Deves ser muito importante.
— Minha senhora, o meu nome é António José de Almeida. Nasci a 27 de Julho de 1866, em Vale da Vinha, concelho de Penacova. Em Dezembro de 1910 casei com D. Maria Joana Queiroga de Almeida, de quem tive uma filha. Faleci em Lisboa, a 31 de Outubro de 1929. Estudei em Coimbra e formei-me em Medicina, em 1895, com a classificação de distinto, com 15 valores. Estive a exercer em S. Tomé durante sete anos e regressei a Lisboa em 1903.
— Vê lá se te calas, que eu não tenho pachorra para ouvir currículos a esta hora da noite. Dás-me um cigarro ou não?
— Minha senhora, não dou cigarros a putas.
— Então vai pró caralho.
— A senhora sabe que acabou de insultar o Presidente da República eleito a 6 de Agosto de 1919, ao fim do terceiro escrutínio?
— Ó pá, vai levar na bilha.
— Não posso crer! O Leopoldo de Almeida e o Pardal Monteiro ficarão a par dos seus desmandos!
— Quem são esses cabrões?
— A senhora ignora o escultor Leopoldo de Almeida e o arquitecto Pardal Monteiro, autores desta estátua que sou eu, desta figura insigne, testemunha de outros tempos em que a polidez imperava?
— Foda-se, pá, ganda pancada. Se soubesse nem tinha pedido o cigarro. Ó meu, atina!


03h45m - Zona do Técnico

As auto-putas estacionam entre o Instituto Nacional de Estatística e a estátua do António José de Almeida.
A meio caminho entre os dois pontos, duas putas estão de cócoras a espreitar para baixo do carro de uma delas. Intrigo-me: um gato? Fuga de óleo?
— Vais ver que ele ainda me diz: “Ó D. Maria, a senhora é que tem as válvulas desapertadas”.
Fica assim provado pela imagem anexa que mesmo as putas têm problemas mecânicos. E que os mecânicos não se inibem de mandar bocas às putas. Imagino que não façam ideia da profissão das suas clientes. Mas isto sou eu a pensar.


03h47m - um pouco abaixo

Cruzo-me com uma puta gordinha, muito nova, que acabou de evitar uma queda por um triz, depois de se ter desequilibrado nos seus sapatos de salto alto. Não evitou um desabafo de si para si:
— Palavra de honra, não sei como ainda não parti os cornos com estes sapatos!
E depois diz-me boa-noite, de forma rotineira e muito educada. Respondi na mesma moeda. Mas esta menina sabia que um simples boa-noite não quer dizer absolutamente nada.
As cidades estão a perder essa rotina rural que se chama “Dar a salva”.

2 Comments:

Blogger JOÃO SÁ said...

Meu amigo, só aqui por estas bandas largas é q te consigo ler,burros são aqueles que nao me deixam ler-te em papel de jornal.
Walt Disney dizia ""All our dreams can come true, if we have the courage to pursue them."
Tenho orgulho em ti continua...

1:19 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Obrigado, meu caro.
Aqui neste blogue vais ficar a saber em que passei o tempo nos últimos três meses de 2004.
E a coragem de remar contra a maré já vai faltando. Começo a interrogar-me sobre muita coisa.
E cada vez me sinto melhor no meio das Comunidades de Leitores (Culturgest, Almedina, Bulhosa), no Franco-Português, no Italiano, no Cervantes, nos ciclos de cinema.
Estas realidades nunca me desiludem.
Ainda ontem, na Casa Fernando Pessoa, assisti a um belo recital de música/poesia de "A musa à mesa". Estreia absoluta em Lisboa.
Um deslumbramento.

2:20 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home