domingo, maio 11, 2008

31 Dezembro de 2004

Almoço com o Luís Carlos

12h30m - Encontro no Galeto com o meu amigo Luís Carlos, para o tradicional almoço bilateral do último dia do ano, no “Haxágono Mais”. Ele vem apetrechado com um “Neura 2004” para eu autografar. Eu ofereço-lhe um “De boas erecções está o Inferno cheio” e dois Rabos. Pomos a conversa em dia e depois meto o Luís Carlos no comboio.

18h15m - Estou no El Corte Inglés. Vejo o último filme do John Waters, o “Filme Indecente”. A Tracy Ulmann está espectacular. Adormeço um bocado. Acordo com uma erecção e um nadinha assolipantado. À saída encontro um elemento da Tertúlia BD, que tinha ido ver o “Alexandre” e não achou tão mau como isso.

21h - Janto em casa. Lisboa está quase parada.

22h - Começo a ouvir o programa especial de fim-de-ano do Aurélio Gomes, na RCP. Tenho o bloco ao meu colo, para tirar notas.
“Eu chamo-me Aurélio Gomes e espero estar à altura do que dizem aqui os Shalamar: ‘I can make you feel good’”.
Abano o capacete. Parece que os “blues” do final do ano desta vez não me agarram!

22h15m - “Ooooh! How do you like your love? (…) Baby, you know, my love for you is real (…) More, more, more, how do you like it, how do you like it? Ooooh! How do you like your love? (…) Girl, if you want to know how I really feel…”

22h20m - “When I wake up in the morning, love…and the sunlight burns my eyes (…) Than I look at you…”

22h28m - Agora por aqui Barry White: “Can’t give enough of your love,baby”.

22h35m - Saio de casa, para chegar, a pé, à Senhora do Monte, com calma. Levo o transístor ligado na RCP. Saio cheio de energia e bem protegido do frio, com sobretudo, luvas e cachecol. É a primeira vez que saio para passar o réveillon sozinho e em trabalho. Talvez por isso esteja animado.

22h45m - Estou em frente ao Técnico quando uma puta pedestre desconhecida se cruza comigo e sobe a rua. Fiquei banzado! Nem na noite de Ano Novo param?

23h25m - Chego à Senhora do Monte. Já lá estão umas 50 pessoas. Colo-me ao gradeamento, para ver o fogo-de-artifício. Sou o único paspalho de transístor ligado, mas ninguém me diz nada. Vou abanando o capacete e começo a sentir os primeiros sinais de solidão. À minha volta sinto uma alegria que não consigo partilhar. Mas fico satisfeito por ver que há por ali gente feliz. E cheia de frio! Ajeito a gola do sobretudo.

23h35m - Ao meu lado, um casal de jovens beija-se, enamorado. Ela é uma loura linda. Começo a ficar decididamente melancólico, apesar da música da RCP, que continuo a ouvir. As pessoas discutem a geografia de Lisboa, tentando identificar as luzes da cidade. Vemos algumas ambulâncias a entrar para S.José. Agora é que fico definitivamente melancólico. Parece que a meia-noite demora a chegar.

23h58m - A Moita e o Seixal devem ter um fuso horário diferente de Lisboa. Começa o fogo-de-artifício na outra margem.

24h - 2005! Aí está ele. Com o fogo da Câmara lisboeta rigorosamente sincronizado com a RCP! Toda a gente se abraça. Há passas. Há champanhe. Eu tenho um sorriso amargo a bailar-me nos lábios. Estou só no meio de cento e tal pessoas e não saúdo ninguém. Alguns chavais lançam montes de “very lights” que acertam nas árvores vetustas da Senhora do Monte, pegando fogo de maneira breve. O melhor é manter-me atento.

24h10m - Desço a correr, rumo ao Terreiro do Paço.

24h20m - Afinal fiquei no miradoiro de Santa Luzia. Aquilo está cheio de estrangeiros. Uma loura bêbeda, muito divertida (provavelmente britânica) anda a dar com os martelinhos na cabeça das pessoas. Sorrio. Sinto a alma a doer de tanta juventude e fé. Ela sabe desejar Bom Ano em português. Fico ainda mais melancólico. O ar cheia a pólvora.

24h35m - Apanho o Metro no Rossio, para a Alameda. Vai apinhado. Uma Babel.

24h50m - Em direcção a casa, deparo com uma auto-puta, no sítio habitual.

01h - Em casa, a ver o show do Crazy Horse na TV. Mais melancolia por um clube que já se finou. Estes espectáculos são de 2000 e 2002 e valem sempre a pena.

02h45m - A SIC e a TVI estão a dar filmes eróticos.
Venho para o meu quarto e finalizo o diário.
Finalmente caio em mim e compreendo que este não foi um livro como os outros.

A escrita foi fácil, sem pretensões, ao correr da pena e do esgotamento, aí a 30 por cento das minhas faculdades habituais. Mesmo assim, sei que me safo. É escrita, não é?
O problema é que me cruzei com muitas emoções, muitos olhares, muita noite. Não é por acaso que a capa do “Cidade do Strip” é um olho.
E uma stripper húngara, numa dessas noites, ungiu-me com os santos óleos da ingenuidade, como uma medalha:
— Há coisas que não podes perceber, porque não és da noite.
A noite dói. Cruza sonhos e solidões.
Custou-me sentir as dores por trás dos corpos. As angústias de quem tem de viver a vida a correr, de quem olha para os 30 anos como uma linha perigosa.
As coreografias de sedução também doem. Mas há sempre uma borboleta de ternuras a esvoaçar dentro de mim. Por vezes, funde as suas asas no olhar de uma donzela saída de uma ilha de brumas.
Foi por isso que este livro valeu a pena.
Só hoje o percebi. À coragem da auto-exposição do meu strip junta-se a descoberta de mais um bocadinho de mim.
Ponto final.
Parágrafo.

3h35m - Escorre-me pelo rosto uma lágrima de mel com travo de Campari. Os meus medos estão todos aí, Monsieur Mardi-Gras.
Ao dobrar da esquina.


FIM

9 Comments:

Blogger Inês Ramos said...

Querido Luís, também acho que este livro valeu a pena.
Apesar de ter sido recusado por uma editora, acabaste-o e aqui está ele. Afinal, foi para isso que ele nasceu. Para ser lido.
Desse outro lado da esquina estamos nós, os teus amigos, para te darmos um abraço.
Inês

1:17 da tarde  
Blogger O Réprobo said...

Meu Caro Luís, claro que valeu as pena, não só o strip é uma arte - o erótico -, como é essencial à revelação da Arte, como a limpeza e recuperação de pinturas, que lhe tomou o nome, com a eliminação dos acrescentos.
Por isso foi importante, para Ti e para nós, que Te re-descobrimos.
Abraço

9:08 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado, Inês e Réprobo.
O que se aproveita é mesmo o partilhar da experiência.

O livro pode ser bem grande, mas não segue nenhum plano. Um diário acaba por ser fácil de escrever. Temos é de manter a disciplina de escrita. Não deixar acumular material.

Se não tivesse editora para ele,como ponto de partida, nunca me tinha metido numa coisa destas.E fica muito mais à superfície do que os livros do João Alves da Costa, por exemplo, que mergulham com uma coragem enorme em mundos difíceis.

Quando o Alexandre Vasconcellos e Sá (na altura editor da D.Quixote) me disse que não sabia se era assim tão fácil publicar este livro, eu ainda estava optimista.
Pensava que o sexo era "gazua" suficiente.

Agora percebi que não era. Como ficou mais que provado com o alheamento das editoras do "Volta a Portugal em salões eróticos", um "produto" que eu julgava do mais apetecível e no qual fiz investimentos financeiros avultados.

Entrei no universo do "Diário Sexual de um escritor frustrado" mais com espírito de repórter do que de escritor. Não há grande preocupação literária.A nível subconsciente talvez eu quisesse ocupar-me com algo. O livro foi um belo pretexto para fazer a minha vida durante três meses, de forma 'normal' e autónoma, pensando que estava a trabalhar.

Não me envergonho nada dele, mas nunca teria enveredado por uma aventura destas num blogue, por exemplo. E também não me teria metido numa coisa destas se não fosse para abrir caminho para outros livros.

Hoje disse-me um amigo daqui da zona que de cada vez que entra no jacuzzi do Holmes Place da 5 de Outubro se lembra do que aqui escrevi.

Outros manifestaram-me o seu lamento por não ter mais livros em perspectiva de publicação.

Não tenho e não estou nada preocupado com isso. Reparem no que ainda há em gaveta:

"Já não há jogos fáceis, para uma abrangente compreensão do jornalismo desportivo" (ensaio humorístico sobre a linguagem do jornalismo desportivo).

"Seja o que Deus quiser" (romance)

Um ou dois livros de contos, conforme o que se quiser fazer.

Para além de compilações de crónicas, se houver interesse: as da revista PGA Magazine (da companhia de aviação Portugália), ao do site "Cidades Crónicas", as da revista "Os meus livros".

Vários livros de poemas.

Peças de teatro.

Compilações de sketches.

Como me disse o Diniz Machado (depois de me ter autografado "O que diz Molero", na sequência da entrevista que lhe fiz em 1988 ou 1989 para a desaparecida Gazeta dos Desportos): "Não se preocupe. O que tiver de sair sai, se estiver lá".

Fico é satisfeito por poder partilhar as minhas vivências com os leitores.

Há dois dias descobri um blogue de uma colaboradora do DN-JOVEM da minha idade (Mundo Perfeito). Em Abril ela postou dois poemas do "Erecções" e houve uma série de comentários. Num deles "deu à costa" o Carlos Narciso (jornalista da TV), a pedir um livro à menina do blogue. E deu uma morada de Paris. Ou seja, à conta do "Erecções" fiquei a saber que o Narciso estava por Paris e muito provavelmente nem se terá apercebido que o Dick Hard é o Luís Graça de quem foi colega de externato em 1981 e de quem foi camarada no jornalismo.

De link em link descobri outro belíssimo blogue: "Un Dress". Lindíssimo, em poemas e fotos.

Estas coisas é que dão gozo.

Obrigado a todos os visitantes. Até sempre. Despeço-me com o meu último poema, mentalmente produzido na sala 4 do Monumental, enquanto via o documentário de Scorcese sobre os Stones. De repente, um grande plano dá a conhecer ao espectador um enorme broche no casaco preto de...

KEITH RICHARDS

Saiu do hospital
de broche ao peito
e fressuras múltiplas

É o que dá
andar metido
em fodas e guitarradas

5:02 da manhã  
Blogger Rozzana said...

Parabéns, Luís!
E não desista!

12:48 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Obrigado, Lolló.
Mas isso não depende de mim.
Para mim, escrita é mesmo 90% de inspiração e 10% de trabalho.
Se não estiver com vontade de escrever, não me sento ao computador.
A menos que seja um trabalho jornalístico, sujeito a prazos.

Quer dizer que os poemas vão continuar a sair, muito mais de madrugada do que de dia.

Quanto ao resto, já não controlo.

Mas é certo que o esforço das edições de autor individuais é coisa que faz parte do passado, a menos que algo de muito imperativo aconteça.

Acho que já escrevi muito.

Para mim é muito mais importante ler. A última livro foi o "Ela e outras mulheres", do Rubem Fonseca. Um primor. Agora estou a ler as crónicas do Nelson Rodrigues: "O remador de Ben-Hur". Outro primor. E sem coragem para me abalançar ao "Guerra e Paz", que está a ser debatido numa Comunidade de Leitores de Lisboa, na Culturgest.

Um beijo transatlântico.

4:24 da manhã  
Blogger Capitão-Mor said...

Já falta muito pouco para eu poder revisitar estes espaços que relembrei aqui neste teu espaço delicioso.
Um forte abraço!

7:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Obrigado, Capitão-Mor.
Bom regresso. Grande abraço.

10:55 da tarde  
Blogger Stella Noir said...

adorei a sua escrita! aqui vao as minhas partes favoritas... fascinam-me os poucos que conseguem trazer poesia as palavras...dar-lhes o ritmo certo, e, ao mesmo presentear o leitor com uma melodia esperta. Parabens!



A noite dói. Cruza sonhos e solidões.
Custou-me sentir as dores por trás dos corpos. As angústias de quem tem de viver a vida a correr, de quem olha para os 30 anos como uma linha perigosa.

As coreografias de sedução também doem. Mas há sempre uma borboleta de ternuras a esvoaçar dentro de mim. Por vezes, funde as suas asas no olhar de uma donzela saída de uma ilha de brumas.

Escorre-me pelo rosto uma lágrima de mel com travo de Campari. Os meus medos estão todos aí, Monsieur Mardi-Gras.
Ao dobrar da esquina.

7:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado, Stella Noir.
Já passaram mais de quatro anos, mas de vez em quando ainda passo pelos mesmos sítios.

E os corpos lá continuam, talvez com maiores sensações de solidão.

3:19 da manhã  

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