domingo, janeiro 21, 2007

8 de Outubro de 2004

Viva o Brasiu! ( Strip no Nina—Diamantes e Pérolas)

Saio de casa perto das 19 horas, a duas horas e meia do filme que quero ver no S. Jorge (Wild Side, de Sébastien Lifshitz, estreado em França a 14/4/2004, 107 minutos, drama).
Vou um bocado às escuras para o filme, na base da militância, aproveitando o privilégio de poder dialogar com o realizador a seguir à película. Chego ao S. Jorge com tempo e compro bilhetes para outras sessões.
Desço a Av. Liberdade e algumas putas clássicas já estão ao ataque ao lado da marisqueira Quebra-Mar. O louro artificial combina-se com um olhar triste e o tédio. Potenciais clientes há poucos. A Avenida está cheia de estrangeiros das mais variadas proveniências.
Vou até à FNAC do Chiado, espreitar as novidades de BD. Propositadamente, não vou à área dos CD de jazz, para não me tentar. Logo ao descer as escadas deparo com um livro da senhora austríaca que “papou” o Nobel: “Lust”, de Elfried Jelinek.
Na contracapa diz que “é um romance pornográfico que escandalizou e entusiasmou a Alemanha pela ousadia da sua narrativa: um industrial, dono de uma fábrica de papel, temeroso em relação ao sida, usa e satisfaz-se sexualmente com a mulher, como no passado se servia de prostitutas. Perante o olhar pouco tímido do filho, acontecem cenas de terrível violência e obscenidade. Tudo num palco íntimo e luxuoso de uma villa”.
Não sou de andar a comprar livros só por ser Nobel (tenho muitos Saramagos de atraso), mas aposto neste. Torço intimamente para que seja mau, de forma a legitimar a escrita deste meu livro. Como quem diz: “Vêem, se aqueles palhaços de Estocolmo dão o Nobel à autora desta obscenidade, por que motivo não posso eu escrever sobre sexo, como um pobre mortal?”.
Espreito o livro (de 1992, editorial Estampa) e vejo que é nitidamente literatura, só com um relance. Resta saber que tal está a tradução. Mas a mão de escrita é inquestionável. Compro.
Passo pelo stand dos jornais e lá vêm para o saco o Sporting, o Benfica (coisa que intriga os donos dos quiosques, um homem que compra os jornais dos dois clubes rivais como quem bebe um copo de água), o Magazine Artes e uma revista brasileira erótica, que nunca tinha visto: Sexsymbol, Setembro 2003, edição número um. Ora bem, isto é que é qualidade de vida: chega agora a Portugal o número de Setembro de 2003, com as novidades fresquinhas: Barbara Tkalec, a dublê de acção mais gostosa do Brasil, nua, incendiando as nossas páginas. Entrevista: Cazé da MTV; Invasão de privacidade: tudo o que rola no banheiro feminino; Voyeur: loura e morena “brincando” sozinhas; Sexo: 25 mulheres contam como é o homem bom de cama; Ajude-nos a eleger as 100 mulheres mais desejadas.
A revista ainda está no plástico, fechada. Primeiro tenho de escrever o diário e já são 5 e 27 da madrugada. Além disso, estou um tanto cansado e sentem-se alguns efeitos dos três Drambuie que bebi no “Nina”, tendo comido ao jantar apenas uma sopa de cação e uma salada de frutas.
Na “Loja das Sopas” fico espantado com um folheto da Fundação Portuguesa de Cardiologia, elaborando uma espécie de dez mandamentos de quem come fruta. Presumo que nas frutarias a Fundação Portuguesa de Cardiologia tenha um destacável sobre as benesses proporcionadas pelas sopas. A nível subconsciente, talvez isso me tenha levado a ir à procura de “fruta” para o “Nina”.
Esta hipótese não é nada descartável. Sendo assim, os 83 euros que gastei deviam ser debitados à Loja das Sopas e à Fundação Portuguesa de Cardiologia, já que eu é que me meti nesta coisa e a Oficina do Livro não patrocina os processos de investigação para o livro. Nem eu pedi. Já estou a imaginar o editor a rir-se.
Saio a pé da FNAC e venho a desmoer o cação rumo ao S. Jorge. Nos Restauradores, dois bombons dos seus 16 anos vêm direitas a mim. Imagino o filme: vou ser “cravado”. O olhar angustiado da meninas rapidamente me desenganou:
— O senhor desculpe, sabe-me dizer onde é o Coliseu?
— É atravessar a rua, meter por aquela que desce ao lado do cartaz dos correios e depois cortar à esquerda. Cuidado com os gatos, que arranham muito!
— Desculpe?!?
— Cuidado com os gatos, que arranham muito!
À segunda, a miúda lá percebeu a piada e riu-se. A amiga ficou a olhar, com cara de parva. Ora, duas miúdas que iam ver o “Cats” ao Coliseu e nem percebiam uma piada simples, sem ketchup ou mostarda.
Subo até ao S. Jorge. As putas clássicas continuam no mesmo sítio. Está de chuva. A esplanada da “Bela Ipanema” (ao lado do S. Jorge) está vazia, por causa das pluviosidades. No dia anterior estava a rebentar.
Entro no S. Jorge e vou direitinho ao lugar P-20. Abro a camisa até ao umbigo e socorro-me do programa para abanar. Mas estava menos gente na sala, as luzes apagaram e aquilo ficou jeitoso.
Gostei do filme. A temática da homossexualidade é tratada de forma sóbria e Sébastien tem intimidade com a câmara e sabe como contar uma história. O registo dramático não cai para a lamechice.
No final, vou ter com o Sébastien, que está a falar com o Tito Lívio. Falamos um bocadinho e ele confessa que adorou o “Noites Selvagens”, do Cyryl Collard. Perguntei-lhe se era uma referência, bem como “A noite usa ligas” (de Virginie Thévet, com que falei há uns 20 anos, no Forum Picoas, noutro ciclo de cinema francês) e “O ódio”, de Mathieu Kassovitz. Lá cavaqueamos um bocadinho, mas depois dou lugar a outras pessoas que querem falar com ele.


23h50m - No “Nina - Diamantes e Pérolas”

Entro no “Nina”. O DJ é um moço novo que deu boa conta do recado ao longo das quatro horas em que lá estive. Do raggaezinho saudável até ao “Sultans of swing”, deu para curtir.
Sento-me, tiro o casaco e peço um Drambuie. Há cerca de oito meninas de serviço. Passam uns dez minutos e sou abordado pela primeira, uma brasileira de Goiânia, meiga e boa conversadora. O empregado vem perguntar se a menina bebe alguma coisa. Suponho que sim, que os líquidos fazem muita falta. Mas eu resolvi não pagar-lhe nenhuma bebida. Ao invés, fintei o destino e disse-lhe:
— Que tal um privado, em vez da bebida?
Pois é, sem crises. Assim até dá gosto. Combinado o privado com antecedência, ficámos no paleio uns 20 minutos. A menina foi empregada de mesa, deixou um filho no Brasil e não tem muitos meses de strip.
Comecei por dizer que o meu pai nasceu em Manaus e tinha uma jibóia no sótão para comer os ratos. A menina não achou lá grande piada, até porque a conversa descambou para ratos (que lhe fazem impressão), osgas (que lhe metem um nojo danado), camaleões (eu tive um aos 12 anos, mas ela também fica stressada), seguido de outra coisa muita animada: a morte de Ayrton Senna. Percebi que a menina estava a ficar com má impressão minha e dei por findo o momento National Geographic Magazine.
Depois lá me desafiou para o privado e fomos nessa, para a sala do lado, onde ela me pediu para me situar exactamente a meio do sofá. É uma questão geométrica, não de somenos importância no encontro de corpos, de mentes e de eternidades.
E o vestido verde-alface lá foi caindo, como mandam as regras. Eu lá fiquei sem camisa (uma novidade) e deixei-me embalar naqueles olhos negros e profundos, naqueles lábios sensuais. Foi um belo provate, sem pressas, com muita comunicação.
— Está em silêncio...
— Pois, é para saborear e a deixar concentrar-se...
— É estranho, você fala tanto...
(Chamavam Rádio Graça ao meu pai, quando ele era novo; e o hobby preferido da minha mãe é o telefone, nem percebo como ainda não inventaram um modelo de telemóvel Lecas LXZ, “Fale até cair pró lado”)
— Pois é, se não houver comunicação até pode ficar meio sem graça...
— Comigo não. Comigo tem sempre Graça, obrigatoriamente.

Vou direito ao casaco e tento sacar a carteira do bolso.
A miúda pensa que lhe vou oferecer dinheiro em troca de sexo e fica toda aflita (meia sem-jeito, em brasileirês). Vejo a aflição dela, percebo a “parte gaga” (como diria o Ayres Nunes) e também fico à toa.
— Por amor de Deus! Não é o que está a pensar! Não vou tirar dinheiro da carteira. Já vai perceber a piada.
E lá saquei do cartão do CNID (Clube Nacional de Imprensa Desportiva) e mostrei o meu visível nome: LUÍS GRAÇA. Aí ela riu-se com gosto e eu senti-me recompensado.
O privado acabou, ela mudou de vestido verde para vestido preto, deixou de ter os cabelos soltos. Foi dançar. Aí é que apreciei o seu corpo com mais nitidez. Provérbio chinês aplicável à situação: “Se estiveres muito próximo da árvore, podes não conseguir ver a floresta”.
Perto da uma da manhã pedi o segundo Drambuie.
Fui observando meninas atrás de menina e depois veio outra brasileira sentar-se ao meu lado. Desta feita, era uma menina do Ceará, que estava em Portugal há muito pouco tempo e se estreava no strip naquela noite. Ainda nem tinha feito nenhum private.
— É consigo que vou fazer o primeiro?
— Por acaso não, por motivos rigorosamente orçamentais. Só por isso. É muito bela, tem elegância e sedução.
— Obrigada. Ainda tenho as mãos geladas. Estou tão nervosa. Vai-me ver dançar outra vez?
Prometi que sim. Temos de apoiar as jovens promessas da modalidade e o sector da formação. A menina deixou dois filhos no Brasil, trabalhou como Relações Públicas numa discoteca e antes de chegar a Portugal esteve numa pequena localidade da Galiza. Chegou a vender pratas na praia de Fortaleza. Imagino aquela beleza, de bikini, a vender pratas areia fora.
Quando ela vai dançar, uma checa muito simpática e divertida, há três anos em Portugal, dá-lhe instruções técnicas, como num combate de pugilismo. A Mónica dos cabelos negros e dos olhos azuis não é uma Praga para a novata. É um porto de abrigo. Fuma um cigarro nervosamente e aplaude com emoção quando a camarada brasileira acaba. A assistência aplaudiu com pouca emoção e ela fez-lhes um sinal, como quem diz: “Ó seus palhaços, não apoiaram a miúda como deve ser e ela está a começar. Isso são termos de estar num clube de strip?”.

Tentei falar inglês com a checa e ela para mim:
— Não é português?
— Sou.
— Então fale português. O meu inglês é pior do que o meu português.
Lá falámos. E depois a Mónica ainda brincou comigo, fazendo-me sinal, de longe, para me calar, quando o DJ mandou brasa com “Ladies and gentlemen, welcome to the jungle”.
Deixei a Mónica a fazer o balanço com a menina brasileira (“Olha, a Mónica está a dançar, só faltam o Cebolinha e o Cascão”, disse eu para a menina brasileira, a páginas tantas), paguei, vesti o casaco e fiz-me à noite.
Quando passei pela “Brasileira”, o sôr Fernando mandou-me uma boca:
— Atão, man, o meu livro?
— Sôr Fernando, já escrevi 15 contos humorísticos sobre o senhor e os seus heterónimos. Está tudo a ser analisado pela editora.
— Bem, vamos lá a ver isso. Já ouvi dizer bem dos contos. Em último caso, se ninguém editar, passa por cá, tomas um bagaço comigo e depois eu guardo o material na arca.
Ficámos assim.
Dei uma esmola de um euro na Rua do Carmo (3h45m), vi um bêbedo a dormir deitado no chão (3h50m), dois homens do lixo a mandar piadas a um casal gay que ultrapassei sem dificuldades (“Ai elas! Malucas!”), depois levei com uma chuvada que até andei de roda, já perto de casa. Mas estava prevenido com um chapéu-de-chuva. Hoje senti o Outono. Cheguei a casa, desmolhei-me, fiquei de calções Butterly (do pingue-pongue) e T-shirt do Fernando Pessoa, bebi um chá, comi uma banana, comi uma maçã e meti-me ao trabalho.
São 6 horas e 16 minutos e nada de novo a assinalar na Frente Ocidental.
Estou cansado, mas feliz. Convém agradecer a Deus esta facilidade de escrever.

4 Comments:

Blogger Maríita said...

E que facilidade meu querido! A tua escrita é muito envolvente. Continua assim.

Beijinhos,
Maria

2:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Muito obrigado, Maria.
Entretanto, passei há poucos dias à porta do clube e...surpresa! Já não é um clube de strip.
O que ficou relatado acabou por ser uma despedida do "Nina".
Não voltei lá mais e na altura estava longe de imaginar que dois anos mais tarde já não seria um clube de strip.

3:10 da manhã  
Blogger Capitão-Mor said...

Excelente, excelente!!! Clap,clap,clap!!!! :)
Isto fez-me reviver um pouco o meu passado lisboeta. Esplanada da Bela Ipanema, São Jorge, FNAC do Chiado e as.......brasileiras! Agora vim directamente para a fonte! Por acaso nunca entrei no Nina. Era mais frequentador da Duque de Loulé e adjacências.

10:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A Duque de Loulé ainda frequento bastante. Por fora. Subo muito a pé do Marquês para o Saldanha, de madrugada. Em vez de vir pela Fontes Pereira de Melo, meto pela Duque de Loulé e vou-me entretendo a observar o movimento de táxis, de entradas e saídas dos clubes.

A crise bateu forte. As meninas de leste quase desapareceram. As brasileiras imperam. Os bólides mais potentes saem menos à rua. Vêm os jipes. Mas aquele espírito "da noite" ainda existe. É realmente outro mundo. Por um lado atrai-me, por outro deixa-me a pensar.

Espero que a prosa continue a atrair. Ainda há muito para ler. Já lá vão dois anos desde que escrevi e foi mais um projecto que andou de um lado para o outro.

Inicialmente era da Oficina do Livro, depois ficou "encalhado" na D. Quixote. Nas mãos de uma pessoa que saiu da editora, para as mãos de outra pessoa que também saiu.

Agora é de quem o apanhar. Mas já passaram dois anos.

4:32 da manhã  

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